Manifesto sobre o Pixo

Manifesto

sobre o Pixo

Quem passar na frente do Justo hoje durante a pandemia pode sentir uma tristezinha por ver a casa fechada pela quarentena. Talvez não sinta uma tristeza tão grande quanto a nossa. Não só pela situação, mas a fachada foi toda pintada de bege para cobrir as pixações. Parece progresso, mas pra gente foi uma batalha perdida. Explico:

Já contamos essa história por aqui, mas vale um preâmbulo. Criamos o Justo no modo guerrilha usando somente os recursos disponíveis entre os sócios. Cada um estourou seu cofrinho, trouxe coisas de casa, trabalhamos em eventos pra juntar grana e a cada sanduíche vendido a gente pensava que era um azulejo da cozinha. A prioridade era deixar as coisas funcionando e como diz um provérbio japonês, o belo é consequência do justo, e assim se fez o “design de interiores” do Justo, como consequência da nossa falta de recursos para fazer algo mais rebuscado. Nessa toada, a fachada foi ficando para o final e até foi pensado fazer alguma arte que se integrasse a arte urbana que ali estava. 

Projeto de arte pra a fachada antes da inauguração

Como dá pra ver somente a parte do logo foi aplicada pois acabamos antecipando a abertura e ela foi feita às pressas um dia antes. O restante seria colocado depois da abertura. Nunca aconteceu e aos poucos fomos nos acostumando com a fachada que perdurou por dois anos.

Projeto de arte pra a fachada antes da inauguração

Tu deve ter percebido que em todos os cenários os pixos nunca foram descartados mesmo com a possibilidade de se investir algum recurso ou tempo para a pintura e agora eu vou entrar no assunto principal desse texto: Pixo é arte. Eu sei que muitos que leem aqui vão discordar mas essa é a nossa opinião e agora eu explico o motivo pelo qual a gente sempre defendeu com unhas e dentes os pixos do Justo. 

"não podemos reclamar da pixação enquanto não fizermos nada para diminuir a discrepância de realidades entre quem vive na periferia e quem habita os grandes centros."

A arte é o produto do artista que, consciente ou não, expõe suas vísceras para criar uma reação no espectador. A arte não depende de pagamento. Não espera por julgamento de autoridade nem de aval da mídia para se manifestar. A arte acontece. Mas você pode argumentar que pixo é vandalismo e não passam de delinquentes querendo demarcar território. Ok, até pode ser, mas e daí? A intencionalidade não vem ao caso. O que importa aqui é essa reação que ela causa no espectador. Eu sempre faço a mesma questão à quem critica o pixo: Tu está criticando a causa ou o efeito? A resposta quase sempre é o silêncio e continuo: A pixação é efeito da má distribuição de renda que é a verdadeira causa, ou seja, não podemos reclamar da pixação enquanto não fizermos nada para diminuir a discrepância de realidades entre quem vive na periferia e quem habita os grandes centros. O pixo é o periférico gritando “eu existo, eu moro na periferia, as vezes sem alvenaria, as vezes sem reboco, as vezes em casas construídas sem a supervisão de um arquiteto ou de um mestre de obras, mesmo assim eu existo, eu varro a tua calçada, eu sirvo o teu café, eu lavo as tuas roupas enquanto tu aproveita teu ar condicionado dentro do teu prédio limpo feito de concreto, tijolos, tinta, veludos e pratas que reluzem e me ofuscam, você não me vê, mas lembra de mim quando meu pixo suja tua fachada” Eu falo isso com propriedade. Nunca pixei nada mas me criei na periferia e já me senti invisível diversas vezes mesmo sendo homem-branco-hétero. Durante a obra eu senti isso na pele novamente no dia em que estava pintando o piso do Justo, coberto de tinta nas pernas e nos braços ao que um dos meu sócios trouxe amigos para ver a obra. Eu não consegui fazer contato visual com eles. Eu era invisível. Eu era um peão que não entendia do que eles estavam falando. 

Manter os pixos do Justo era uma questão de honrar os que passaram ali antes, os que se sentiram pertencentes daquele cantinho. Foram três anos do endereço sem atividade onde a cidade imprimiu aos poucos suas características plurais com spray no concreto. 

Um dos maiores plot-twist da história do bar

Depois que o Justo abriu a gente reparou que toda quinta acontecia uma junção de pessoas do outro lado da escadaria. Fui investigar e descobri que era a Batalha da Escadaria, com duelos de hip-hop que acontecia a tempos no viaduto. Pensei em trocar uma ideia com eles mas o assunto foi ficando de lado. Um dia mandei mensagem pra eles pra conversar e conheci a Carol Rata, organizadora do evento, jovem negra e periférica. Na conversa sobre como o Justo poderia apoiar a batalha eu perguntei se ela já tinha frequentado o bar e disse que não. Qual o motivo? “ah, o pessoal que fica na frente e super bacana e a gente acha que as coisas são caras”. Expliquei que era tudo super barato e que eles estavam convidados a ocupar o espaço. Percebe? A partir daí fornecemos refeições para os organizadores e premiações para os vencedores das disputas. Depois da conversa fui falar com o nosso segurança e dizer pra ele prestar apoio para a batalha caso desse alguma treta pois eram dos nossos e ele disse uma frase reveladora: “a gente já dava um apoio quando eles faziam aqui”  quê? “sim, eles faziam a batalha aqui na frente do Justo antes dele existir: Daí me dei conta que a gente tinha tirado eles do lugar deles e que as pixações provavelmente foram feitas por eles. Percebemos que mesmo com toda nossa missão de ser um lugar democrático falhamos miseravelmente. 

Eles começaram a frequentar o bar, alguns dos participantes começaram a apresentar suas rimas lá como a galera do Uni Verso e dos Poetas Vivos e depois de um tempo contratamos a Carol para o caixa. Aos poucos tentamos devolver o nosso canto da cidade à essas pessoas.

A briga perdida, mas nem tanto.

Eis que o condomínio decidiu reformar o prédio e a nossa fachada estava no projeto de repintura. Argumentamos incansavelmente que a nossa fachada fazia parte da identidade do bar. Consultamos orgãos de proteção ao patrimônio artístico, falamos com a imobiliária e parecia que nem o papa ia nos ajudar. Foi tudo coberto de bege. Em uma conversa com o síndico ele nos disse que depois que tivesse pintado a gente podia fazer o quiséssemos e foi aí que contratamos dois garotos da Batalha da Escadaria, o Carpes e o Math, para devolver os pixos e ficou assim:

Projeto de arte pra a fachada antes da inauguração

Vizinhos chamaram a polícia achando que estavam vandalizando. O condomínio avisou que iria repintar e repintou. No dia de hoje está acontecendo a segunda demão. Pense no provérbio japonês citado lá em cima: Essa fachada bege lhe parece bela? Lhe parece a consequência de um processo justo?

Projeto de arte pra a fachada antes da inauguração

Considero que a briga foi perdida, mas a batalha não. O pixo do Carpes da janela central virou a estampa da nossa camiseta de 2 anos. Frase que a gente criou pra usar como hashtag em uma campanha pra mostrar que o centro merece confiança. A camiseta do primeiro ano tinha a mesma frase mas com a tipografia do Justo. Agora se tornou necessário vestir a camiseta do pixo, da periferia, dos que são invisíveis, dos que lutam contra o acinzentamento do mundo. Estamos tristes sim, mas a guarda não tá baixa.

Adelino Bilhalva

 

Segue o Carpes

Segue a Batalha da Escadaria

Compra a camiseta.

 

Papo Justo com Atena Beauvoir – Arte e Resistência Trans